Vestida de chita

29 de novembro de 2008

Elis Regina - O Bebado e A Equilibrista

Dona Abastança

«A caridade é amor»
Proclama dona Abastança
Esposa do comendador
Senhor da alta finança.

Família necessitada
A boa senhora acode
Pouco a uns a outros nada
«Dar a todos não se pode.»

Já se deixa ver
Que não pode ser
Quem
O que tem
Dá a pedir vem.

O bem da bolsa lhes sai
E sai caro fazer o bem
Ela dá ele subtrai
Fazem como lhes convém
Ela aos pobres dá uns cobres
Ele incansável lá vai
Com o que tira a quem não tem
Fazendo mais e mais pobres.

Já se deixa ver
Que não pode ser
Dar
Sem ter
E ter sem tirar.

Todo o que milhões furtou
Sempre ao bem-fazer foi dado
Pouco custa a quem roubou
Dar pouco a quem foi roubado.

Oh engano sempre novo
De tão estranha caridade
Feita com dinheiro do povo
Ao povo desta cidade.

(Manuel da Fonseca)

28 de novembro de 2008

Chicago: Cell Block Tango

Rodrigo Leao & Beth Gibbons - Carousel

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

(Eugénio de Andrade)

As famílias felizes parecem-se todas;
As famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
( Léon Tolstoi)

26 de novembro de 2008

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: 'Fui eu?'
Deus sabe, porque o escreveu.

(Fernando Pessoa)

19 de novembro de 2008

...é perfeitamente óbvio e claro que o homem que narra a história da sua vida não é o mesmo que o «herói» que percorre as páginas desses romances autobiográficos. O homem que confessa os seus pecados, os seus crimes ou os seus erros nunca é o mesmo que os cometeu.
(Henry Miller)

Dificuldade de Governar

1.
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2.
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3.
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4.
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

(Bertolt Brecht)

Genesis - the Carpet Crawlers live

16 de novembro de 2008

Só não se basta a si próprio o que não tem com que se bastar. Assim se explica que ele busque nos outros o que lhe falta em si mesmo. Isto deve estar certo. E todavia pode não estar. O que falta no que encontramos pode não ter que ver com o que lá está, mas com o que lá se procura. O erro está pois no que se não deve procurar. Posso procurar um sistema de ideias onde só encontro uma dose de senso comum. Posso encontrar uma côdea de pão onde procurei um bife com ovo a cavalo. Assim há que ir procurar no fornecimento alheio o que nos falta no próprio - em contentamento, em pacificação, em reconhecimento da glória de que duvido ou não tenho. E no entanto, a ambição puramente individual é à nossa medida que deveria talhar-se. Excepto talvez para o que sustenta essa ambição, ou seja para o que nos sustenta. Mas nesse caso a ambição chama-se justiça e já não é individual. E nesse caso fazem-se revoluções.

(Vergílio Ferreira)

Amanha é sempre longe demais - Rádio Macau

1 de novembro de 2008

Casper the Friendly Ghost